Exposições » Abismos Contemplativos da memória

Exposição na Galeria Adearte agosto/2014

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Natureza e Memória- Bianca Coutinho Dias. O arquivo fotográfico sentimental de Heloísa Junqueira – ao qual fui apresentada - parece ter provocado a necessidade de reavivar o território da memória, algo que se destaca em muitas imagens com camadas sobrepostas, num trabalho que faz uso delicado e preciso de fotogravuras e registros fotográficos. São fotografias na natureza, assombradas com sua imensidão. Retratos solitários, em que parece não haver regra externa ou convenção, senão a da própria subjetividade presente no instante. Coincidentemente, o que se esboça é uma repetição onde vida e sonho se misturam: momentos roubados, estranhos capturados diante da força enigmática do natural. Imagens que estavam resguardadas da luz, da umidade, da curiosidade alheia e, agora, circulam num trabalho que se apresenta em toda a sua potência. E, na iminência de serem expostos, esses objetos carregam em si tempo, personagens, eventos, emoções, a solidão de cada um inserida em paisagens de grande amplitude. São sujeitos fotografados de costas para o espectador, diante de seus próprios abismos contemplativos ou de perplexidades que constatam a fragilidade do humano. Heloísa constrói seu trabalho a partir de um arquivo de mais de cinco anos de viagens. E descobre, nos registros guardados, algo da repetição e da memória que tem, aqui, uma função de mistério que, se não reconstrói o tempo, tampouco o anula. Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte. Arquivar fotografias espraiadas no tempo e no espaço é também fotografar a própria vida e se colocar diante do espelho. Neste sentido, o arquivamento é uma prática de construção de si mesmo e de resistência. Abrir seus arquivos é entregar seus vários corpos, seus muitos tempos, seus múltiplos “eu” aprisionados em cada sujeito fotografado em sua solidão abissal. Roland Barthes, após a morte da mãe em 1977, entregou-se a organizar arquivos de família, remexer objetos e rever fotos. O efeito de sua garimpagem pode provocar identificação, mas também estranhamento. Este é também o efeito do trabalho de Heloísa. Enquanto escrevia seu Diário de Luto, Barthes relia “Em Busca do Tempo Perdido”, romance de Marcel Proust, obra universalmente conhecida em que biscoitos guardam a chave de uma memória involuntária, e provocam o reviver, de modo muito vivo, de sensações do passado. Tal reconstituição fragmentária é atributo da memória. O evento já passou. A pessoa já se foi. A cena se decompôs. Resgatar lembranças é lidar com a efemeridade da vida. A foto, o objeto, a letra. Partes estilhaçadas de um todo que nenhuma história consegue abarcar. Ao sabor de suas fotos, Heloísa se reconhece num eixo em que constituiu seu trabalho como artista. A fotografia e a fotogravura tornam-se o meio para o resgate do corpo cravado na memória. Apesar da esquiva, de não se registrar diretamente nas fotos e permanecer arisca aos olhos do observador, é através dela que um dos possíveis caminhos de encontro com o passado – perdido em sua completude – pode acontecer. A imagem guarda um fragmento de memória que nenhum outro sistema de representação consegue igualar. E Heloísa parece saber disso. A imagem é apenas um fotograma, sem antes nem depois. É diferente dos filmes, que são movimento. Em compensação, a fotografia tem a cena congelada. E pode-se olhar uma imagem horas a fio e, dez anos depois, voltar a ela. Mas a interpretação sobre a cena poderá ser outra, pois o espectador, apesar de ser o mesmo, não é mais a mesma pessoa. Seguindo esta discussão podemos ir além e afirmar que a fotografia, mais do que resgatar ou suscitar lembranças, pode revelar fragmentos de lembranças que não poderiam jamais ser recuperados de outro modo. Para Susan Sontag, a fotografia proporciona um sistema especial de revelação, que mostra a realidade como não a víamos antes. Na captura do instante único numa imagem congelada, há um traço que subverte a distância insuperável, mas há outro que diz respeito ao luto, pois há ali também algo irremediavelmente perdido. Em Barthes encontramos um lindo relato a partir de suas consultas aos registros fotográficos da mãe: “Eu consultaria imagens em vão, não poderia nunca mais lembrar-me de seus traços ou de convocá-los inteiros, a mim.” Debruçar-se sobre imagens é mexer com o imaginário. É como se a barreira existente entre alguém e as coisas se tornasse mais tênue. Desperta-se a vontade de ter novamente em mãos, ao contato, a presença, o que os sentidos possam identificar como familiar. No entanto, o que o registro pode trazer é senão essa fissura aberta no campo do olhar. Todo registro fotográfico participa da mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade da pessoa ou do objeto fotografado. Se a fotografia tem o poder de despertar reminiscências, lembranças carregadas de afetividade, nostalgia, também coloca em evidência os detalhes, momentos e gestos que nos escapam. Marcel Proust, que era um escritor da memória e altamente imagético, foi tema de um importante e raro estudo sobre a presença da fotografia em sua vida, realizado pelo fotógrafo Brassai. Segundo ele, Proust provavelmente compreendia o poder da fotografia enquanto experiência visualizável, memória registrada, vestígio do passado restante no presente, fonte de inspiração concreta e instigante: o escritor colecionou várias fotos ao longo da vida e utilizou muitas como modelo inspirador para a composição de diversos personagens de “Em Busca do Tempo Perdido”. Ao longo do romance pode-se perceber, em muitas passagens, quanto o elemento fotográfico influenciou o autor. Temos, então, a fotografia como transformação da realidade, como composição, ficção. Registro de jogo de sombras e luzes de algo ou alguém que, em algum momento esteve, concreta e realmente, na frente da objetiva ou de costas para ela, para que pudesse ser produzido o documento fotográfico. Nisso reside a dimensão indiciária de uma foto. Phillipe Dubois diz que “a imagem-foto torna-se inseparável de sua experiência referencial, do ato que a funda”. Desta forma, podemos salientar a fotografia enquanto índice, por guardar o traço de um real, por ser referência a algo que existe (ou existiu). Heloísa parece fazer o mesmo caminho escolhido por Barthes para falar de fotografia: remontar os escombros do passado, tomar a fotografia como ponto de partida para reescrever algo, para pensar a memória que se reinventa, como arte técnica que congela o tempo e faz do instante algo infinito, em que se reproduz mecanicamente algo que não poderá mais se reproduzir existencialmente. Ela entende que recontar e reinventar é também perder. Para Barthes a fotografia parece não perder o conceito benjaminiano de “aura” pois ela sempre, por mais reproduzida que venha a ser, será o registro de um instante único. O fragmento gravado representa o congelamento do gesto e da paisagem e, portanto, a perpetuação de um momento. Em outras palavras, da memória. A cena registrada na imagem não se repetirá jamais. O momento vivido, congelado pelo registro fotográfico, é irreversível. Na construção narrativa que Heloísa faz com fotografias e fotogravuras há sempre uma névoa, um enigma e a compreensão da obra de arte como um jogo, posto que o artista pode apenas contornar aquilo que jamais alcança. Olhar inalcançável, que aponta para uma abertura, para um lugar onde o nosso ver é inquietado, um espaço onde algo estranhamente se mostra. Mas, o que seria isso que retorna em meio às imagens como estranheza e fascinação? Didi-Huberman compara à definição de Walter Benjamin de “aura” como “única aparição de uma lonjura, por mais próxima que esteja”, referindo-se ao retorno de algo que deveria permanecer em segredo, na sombra, e que dela saiu. Toda forma aurática se oferece aos nossos olhos como algo “estranhamente inquietante” no sentido que nos coloca visualmente diante de algo recalcado que retorna. Nesse sentido, temos no trabalho de Heloísa imagens que somente poderiam ser apreendidas através das experiências da aura e do estranho, porquanto elas são lugares que se abrem e nos incorporam. O caráter estranho da imagem reside na sua capacidade de inquietar e impor sua visualidade como uma distância, por mais próximo que estejamos dela, distância essa situada entre o que se oculta e o que se revela na cisão aberta pelo olhar. O que vemos numa foto, não é a foto, mas o outro que ela retrata, que ela faz surgir. A fotografia aqui é o objeto metafórico do imaginário, porta que Heloísa generosamente abre e nos convida a entrar.

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